para quem quer ler e ouvir uma boa prosa sobre aprender e ensinar... e conhecer soluções locais para problemas humanos! uma série de textos e entrevistas...

quarta-feira, 13 de abril de 2011

darcy ribeiro - a educação no brasil

DARCY RIBEIRO
A Educação no Brasil (fragmento)

Estamos, como se vê, diante de um fenômeno que precisa ser explicado: como é que o Brasil consegue ser tão ruim em educação? Quem quisesse organizar um país com o objetivo expresso de alcançar, com tantos professores e com tantas escolas, um resultado tão medíocre, teria que fazer um grande esforço. Um país monolíngüe como o nosso, em que não há nenhuma barreira de ordem étnica ou cultural, conseguir ser tão medíocre no seu desempenho educacional é realizar, sem dúvida, uma façanha incomparável. Ainda que nada invejável.
Um certo objetivismo sociológico dá explicações copiosas, expressas em numerosas teses doutorais sobre as causas deste fracasso, tratando-o sempre como natural e até necessário. Notoriamente, a função social desse objetivismo é nos consolar, demonstrando que tudo isto decorre dos processos de urbanização e de industrialização. Processos que, transladando a população trabalhadora do campo para a cidade - por força do próprio progresso que afinal nos alcança - perturba as instituições sociais, inclusive as educacionais, compelindo-as a se transfigurarem tão precariamente. Advertem, nesta altura, que o problema é ainda mais complicado porque à urbanização caótica se seguiu um processo de industrialização intensiva que, exigindo mão-de-obra moderna e disciplinada, reclamaria uma nova escola ideológica, capacitada a domesticar os camponeses urbanizados e proletarizados, através de uma indoutrinação que os convença de que são pobres porque são burros.
Essas seriam as causas do desastre para os liberais. Desastre, aliás autocorrigível, dizem eles, uma vez que a modernização das cidades brasileiras, criando pólos de progresso, iria dissolvendo os bolsões de atraso, até que a civilização industrial a todos homogeneizasse, num assalariado capitalista moderno. Alguns sociólogos esquerdistas aderem a estas teses acrescentando triunfalmente que só a revolução socialista dará aos brasileiros a escola primária que a revolução burguesa deu por toda parte. Toda essa literatura não ensina nada. No máximo fotografa algumas situações sem explica-las. Para tanto, precisamos fazer uma crítica história da razão sociológica.
Seria verdade que nosso desastre educacional se deve a tais processos, se o ensino houvesse sido bom antes da urbanização caótica e da industrialização intensiva. Se ao menos ele fosse comparável, ao que fizeram em matéria de educação, outros países latino-americanos após a independência, como a Argentina, o Uruguai e o Chile. Como nada disso ocorreu entre nós, cevemos concluir que nosso descalabro educacional tem causas mais antigas. Vem da Colônia que nunca quis alfabetizar ninguém, ou só quis alfabetizar uns poucos homens para o exercício de funções governamentais. Vem do Império que, por igual, nunca se propôs educar o povo. A República não foi muito mais generosa e nos trouxe à situação atual de calamidade na educação.
Nós propomos, como explicação, que estamos diante de um caso grave de deficiência intrínseca da sociedade brasileira. Nossa incapacidade de educar a população, como a de alimenta-la, se deve ao próprio caráter da sociedade nacional. Somos uma sociedade enferma de desigualdade, enferma de descaso por sua população. Assim é, porque aos olhos das nossas classes dominantes, antigas e modernas, o povo é o que há de mais reles. Seu destino e suas aspirações não lhes interessa, porque o povo, a gente comum, os trabalhadores, são tidos como uma merda força de trabalho, destinada a ser desgastada na produção. É preciso ter coragem de ver este fato porque só a partir dele, podemos romper nossa condenação ao atraso e à pobreza, decorrentes de um subdesenvolvimento de caráter autoperpetuante.
Nosso atraso educacional é uma seqüela do escravismo. Nós fomos o último país do mundo a acabar com a escravidão, e este fato histórico, constitutivo de nossa sociedade, tem um preço que ainda estamos pagando. Com efeito, o escravismo animaliza, brutaliza o escravo, arrancado de seu povo para servir no cativeiro, como um bem semovente do senhor. De alguma forma, porém, ele dignifica o escravo porque o condena a lutar pela liberdade. Desde o primeiro dia, o negro enfrente a tarefa tremenda de reconstruir-se como ser cultural, aprendendo a falar a língua do senhor, adaptando-se às formas de sobrevivência na terra nova. Ao mesmo tempo, se rebela contra o cativeiro, fugindo e combatendo, assim que alcança um mínimo de compreensão recíproca e de capacidade de se situar no mundo novo em que se encontra.
Este é o lado do escravo, na escravidão. O lado do senhor é o exercício do papel de castigador do escravo, de explorador, condenado ao opróbrio, porque seu combate é para eternizar o cativeiro. Uma classe dominante feita de senhores de escravos ou de descendentes deles é uma classe enferma que carrega em si, no mais recôndito de seus sentimentos, a herança hedionda dos gastadores de gente. Para este patronato, o negro escravo e, por extensão, o preto forro e ainda todo o povo, é uma mera força de trabalho, é uma massa energética desgastável, um carvão humano que se queima na produção.
Alguém poderia argumentar que estes ancestrais estão muito longe de nós. São nossos avós, é verdade, distantes de nós, é certo; mas nem tanto que não sejamos dignos netos deles, guardando em nossos genes e em nosso espírito, sua herança tão legítima como hedionda.
O fracasso brasileiro na educação - nossa incapacidade de criar uma boa escola pública generalizável a todos, funcionando com um mínimo de eficácia - é paralelo à nossa incapacidade de organizar a economia para que todos trabalhem e comam. Só falta acrescentar ou concluir, que esta incapacidade é, também, uma capacidade. É o talento espantosamente coerente de uma classe dominante deformada, que condena seu povo ao atraso e à penúria para manter intocada por séculos, a continuidade de sua dominação hegemônica e as fontes de seu enriquecimento e dissipação. Uma dominação infecunda, que nos põe na retaguarda das nações e nos afunda no retrocesso histórico, porque isso é o que corresponde aos interesses imediatistas da nossa classe dominante. Quem duvidar, cuidando que a culpa é do capitalismo, veja o que os capitalistas fizeram na América do Norte. Às vezes penso que nós somos o que seriam os Estados Unidos se o Sul vencesse a Guerra de Secessão. Aqui a escravidão venceu, e mesmo depois de estirpada pela lei, foram os líderes do Império Escravista que passaram a reger a República.
A esta luz se vêem como façanhas elitistas o que são fracassos sociais. Assim se entende que tenhamos um vastíssimo sistema educacional que não educa, bem como portentosos serviços de assistência e previdência social que funcionam de mentira. Em resumo, que em tudo que serve ao povo, sejamos campeões de ineficácia

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